3 de dezembro de 2007

Podem as páginas de um livro...

Este texto testemunha o encontro entre uma mulher desencontrada de si mesma e o retrato do seu próprio eu, ocorrido aquando duma visita à Biblioteca da Escola Secundária Alcaides de Faria.

Naquele dia viera mais cedo.
Um sentimento de angústia crua e amarga inibia-lhe o sorriso. Olhava os outros como a turba que a comprimia até às entranhas. Enjoada das realidades doentias e abomináveis, escrevera nessa mesma madrugada um belo hino à beleza e à juventude que se lhe vinham esquivando, cada vez mais freneticamente.
Chegou, abriu melancolicamente a porta; olhou sem nada ver e como que instintivamente, abeirou-se de uma cadeira; puxou-a para si e abandonou-se a ela.
Incapaz de uma pronta resposta à mágoa avassaladora e madrasta que lhe batia de uma forma cadenciada no mais profundo do eu, aquela mulher de olhar vivo e conturbado, como inquisidora implacável a mando do espírito, rebusca e rebusca e volta a rebuscar o motivo de tal estado de alma, sem contudo o encontrar.
Numa atitude de justificar a utilidade do momento, olhou vagamente em redor, acabando por se deter numa parede, onde, exposto, estava um trabalho executado com originalidade e poder criativo: o livro “O retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde, aberto nas páginas 34 e 35, aprisionado por arames que se entrecruzavam
despertara-lhe a curiosidade. Levantou-se, e já cara a cara, o livro sorriu. Incrédula, olhou-o de novo, de novo sorriu.
Estaria louca?
Tentando decifrar a intenção do criador, contemplou, reflectiu e leu:
Tenho ciúmes de tudo em que a beleza não morre. Tenho ciúmes do meu retrato que você pintou. Por que há-de ele conservar o que tenho eu de perder? Cada momento que passa rouba-me algo, e dá-o a ele. Ah, se acontecesse ao contrário! Se o retrato pudesse mudar e pudesse eu ser sempre como sou agora!”
Sentindo a força e o poder daquelas palavras, agora despidas, invadindo, sugando-lhe o ser… também os olhos (os seus) como os de Dorian Gray, “se arrasavam de lágrimas escaldantes”…
Encontrara inesperada e finalmente a razão de tanta angústia, tanta mágoa, tanta dúvida, tanta tristeza inexplicável!
Tudo era agora tão claro! ...

por Méssá

Uma nota de rodapé:
São sempre bem vindos estes exercícios de escrita, estes "desvendares" de estados de alma, estes olhares sobre o que nos cerca e dos reflexos que daí emanam... mostram que este espaço pode ser um espaço de interacção. Um espaço vivo.
Obrigado Méssá, cá esperamos mais textos teus.

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