Chegado o momento: quem dobrou a entrada da biblioteca deparou-se com um cenário nada habitual num espaço destes; no escuro, brilhavam dezenas de pequenas velas, que conferiam à envolvente um toque quase mágico – livros, mobiliário, pessoas, semblantes difusamente iluminados pelas trémulas chamas. Ao centro, entre estantes, quatro velas vermelhas e um livro sobre uma mesa. Num recanto mais ao fundo e pouco iluminado, dois vultos moviam-se entre os livros, preparando algo. Elementos da comunidade educativa iam chegando e ocupando lugares na sala de leitura. Aguardavam expectantes o que iria suceder-se, quando alguém, em passo rápido, avança para a boca da cena, senta-se numa cadeira e, acto contínuo, abre o livro que há pouco repousava, sob a luz das velas, no tampo da mesa. Sucedem-se, com cadência, as palavras que da sua boca emergem. Palavras que enchem o espaço e atingem todos e cada um, palavras de Eugénio de Andrade (“São como um cristal as palavras…”); palavras de Mário de Cesariny, palavras que anunciam outras palavras (“entre nós e as palavras há metal fundente, / entre nós e as palavras há hélices que andam…”_in “You Are Welcome To Elsinore”); palavras que deram o mote às que se seguiriam, as palavras da “Emozão”.
“Comovo-me. / Eu sou a comoção / Contemplo / O sol caído no horizonte, / a estrela que cintila no céu negro, / o campo que se estende...” troou a voz de uma das personagens – a Emoção; “Oh, sim, sim, / tão simples que perdes a importância que poderias ter, que deverias ter!” – ripostou a voz da Razão.
Naquela espécie de palco, à luz das velas, duas figuras de negro trajadas, caras mascaradas com pensada simetria e voz liberta, fizeram vibrar o ar com sibilante intensidade. As palavras ganharam corpo e materializaram ali o eterno confronto entre duas dimensões da natureza humana: Razão e Emoção. De um lado a Razão; do outro, a Emoção. Eis o confronto que se anunciara.
E assim foi, por largos minutos de sortilégio pareceu fulgir ali um pouco daquela intensidade dramática que associamos à tragédia grega, numa outra escala é certo (quiçá haja ainda a oportunidade para um Coro!), mas tocante.
Todos os que à biblioteca se dirigiram, assistiram a uma representação vibrante e intensa, assente num texto por vezes dolente e poético, outras cru e frio, quase trágico.
Momentos que cabem por inteiro no espaço de uma biblioteca - porque não? A biblioteca como espaço de difusão de saberes, de recursos imprescindíveis ao acto pedagógico, pode ser também espaço difusor de momentos de cultura e animação. Espaço que pode e deve contribuir para a emergência de novas modalidades de acção educativa. Pois, a formação do ser humano não pode ser predicada de integral, se no seu seio não albergar também a dimensão lúdica e artística, porque muito do seu húmus passa por aí. A par das aulas que preenchem o nosso dia a dia, dessa dimensão mais formal de chamar ao conhecimento e às competências, desse labor de todos quantos querem tornar os seus alunos melhores cidadãos, é bom sentir também a refrescante brisa do que a cultura tem para nos dar.
Resta, pela inspirada leitura dos poemas de Eugénio e de Cesariny (prof. José Veiga); pela portentosa interpretação de um texto da sua autoria, também ele desassombrado e intenso, (professoras Marieta Barbosa e Virgínia Rafael) o nosso agradecimento, que não esconde a vontade de ver repetidos momentos como este. (JD em nome da Equipa da Becre).
Finalmente, como resistir a postar algumas fotos da sessão e o texto integral apresentado a público.
texto de: Marieta Barbosa e Virgínia Rafael
(para aceder ao texto, numa outra página, clique aqui)
Emoção:
Comovo-me.
Eu sou a comoção.
Contemplo.
O sol caído no horizonte, a estrela
que cintila no céu negro, o campo
que se estende...
Quieta, muda, observo e comovo-me
com gestos simples.
Razão:
Oh, sim, sim,
tão simples que perdes a
importância que poderias ter, que deverias ter!
Emoção:
Frívola, deixo-me vaguear...
A emoção...
E tu sempre pronta a lembrar o que
está certo. Ai, não te atrevas, não te
atrevas...
O quê? Aqui quem dá ordens sou eu!
Nem tentes! Não te atrevas tu!
Queres-me hirta, rigorosa, lúcida,
bem comportada.
Como posso?
Podes, claro que podes. Escuta-me, segue o meu exemplo. Eu nunca me envolvo nas coisas do coração. Sabes porquê? Porque não quero sofrer! A vida é demasiado efémera e fugaz para que não a viva com tranquilidade.
Emoção:
Ouve! Eu resido no âmago. No silêncio sombrio.
Razão:
Levanta-te, ouviste? Eu quero que te levantes! A comoção esmaga-te.
Escuta-me! Escuta-me!
Emoção:
Eu sou o riso simples de quem é feliz.
A mão dada a um adolescente
apaixonado.
A pirueta pueril da criança que finta
o amigo.
O rubor do primeiro beijo.
O bater leve e lento de um coração
que se desprende.
Razão:
Ah, sim.
E por isso também és
a decepção, a frustração, a raiva
a ira, a dor, a angústia. Quer
queiras, quer não, és
desassossego permanente.
Emoção:
Sabes lá como eu sou...
Razão:
Sei pois!
Emoção:
Sou a fome daquele corpo vítima do
poder de outros.
Sou a mulher retalhada que se
desdobra na vida.
Sou a mácula deixada no rosto
da criança maltratada.
Sou o homem vertical prestes a
desmoronar-se.
Não podes saber como fazem.
Porque tu não és...
Não, realmente não sou, não quero ser
e jamais serei um joguete
nas tuas mãos.
Eu penso e porque penso, logo existo;
E se existo, logo quero, posso e mando!
Emoção:
Eu trago-os dentro de mim.
Eles levam-me sempre com eles.
Quando se recolhem nos seus
quartos o que nasce?
Razão:
Lá vai ela sentir.
Que maçada! Que maçada!
Emoção:
A raiva contida
O amor sofrido,
A palavra magoada,
A luta desistida,
As ilusões vendidas,
A esperança encarcerada,
A nódoa negra…
A nódoa negra que entope a alma.
E choram...E eu choro...
Razão:
Sois todos uns fracos!
Como me envergonham!
Não valem nada!
Não chegam sequer a ser nada.
Emoção:
Curvam-se sobre o ventre e doem as
entranhas
Rasgam-se as entranhas
Odeia-se, ama-se, resiste-se
E o ventre apoderado de dores
Saca do peito o coração
E ventre e coração anestesiam-se
mutuamente...
E homens e mulheres,
Adolescentes e jovens,
Crianças e velhos
Recolhidos no seu quarto
Desprendem-se de ti.
E choram... E choram...
E sentem…E sentem...
Sim, sim, mas só enquanto eu permito e me interessa.
Quando me escutam,
seguem-me rigorosa e cegamente.
Cumprem escrupulosamente o que eu quero,
nem que para isso tenham de se anular,
vivendo como mortos vivos, em caixas de matéria
que vai apodrecendo e cheira mal.
A mim nada disso me incomoda. Eu não tenho sentidos.
Jamais poderei vivê-los. Eu sou antes o rigor, o método
a disciplina, o que se deve ser e
não o que se é ou se quer ser. E eu vencerei! Vê como o mundo me segue. Onde está a Tolerância? A Justiça, a Fraternidade, o respeito pela Vida, pela Natureza, pelo Eu que os habita? Não tens outra saída. Eu venço sempre!
Emoção:
Eu sei o que lhes pedes:
Não chores
Não mostres a tua fraqueza,
Não te curves,
Não lances a mão à cintura,
Não praguejes,
Não grites,
Não fales alto,
Não te comprometas,
Não sintas,
Não te comovas.
Ora, não te envolvas.
Mas ofende sem rubor,
Magoa com educação,
Lixa os outros e olha-os de soslaio.
E homens e mulheres,
Adolescentes e jovens,
Crianças e velhos
Vivem em partes de si
Amortalhados
Na aparência podre, suja…
Alguém os convenceu
Que se se comoverem são fracos,
Vulneráveis, frágeis…
Razão:
E não é verdade? Vê como eu impero.
Já ninguém quer ser fraco, vulnerável ou frágil.
Por isso assistimos a um mundo onde já ninguém chora ou ri: o mundo do faz de conta.
O mundo que eu quero que exista; porra!
Eu tenho que ter,
eu tenho que brilhar,
eu tenho que ter sucesso,
nem que para tal te abafe, te esmague, te destrua.
Eu sou a fama,
eu sou o poder,
eu sou tudo a qualquer preço.
Só me falta a glória!
Emoção:
E eu a que assisto?
A gente doente de tão séria
Muros intransponíveis
Carácteres reservados
Frios, agrestes, enlutados, feios,
horrorosos.
E eu comovo-me
Ao ver como estou neles
Pertinho da explosão
E aí até tremo
Meu Deus eles vão perder a cabeça
porque nasceu-lhes nela o coração.
Mas não.
Controlam-se.
Retrincam-se.
Fabricam-se.
Comportam-se.
Razão:
E porquê?
Porque eu sou mais forte. Eu
tenho aliados e o interesse e a
ganância fazem o resto! Eu só
dou um empurrãozinho,
mostro-lhes um filme com um
final feliz e ei-los! Até se
esmagam, se atropelam, se trincam,
se espezinham, se destroem.,.
Sou ou não sou poderosa?
Emoção:
E o ódio espalha-se pelo corpo.
Preparam a fisga para nova
investida.
Depois vão para o quarto
E choram... E choram...
Razão:
E o mundo do faz de conta
continua!...Não tenho eu
razão? Tenho pois!
Emoção:
E eu que vivo neles e por causa deles.
Não me apetece chorar...
Razão:
Pois não, porque eu te espreito a cada momento e até tu serás minha!
Estou prestes a consegui-lo.
Tu serás minha! Camões escutou-te, mas os homens seguiram-me.
Pessoa escutou-se e tu venceste outra vez.
Até com Reis conseguiste o «carpe diem», mas os homens continuam a seguir-me em linha, todos direitinhos ao abismo.
Chegou a tua hora.
Também serás minha!
Eu serei a dona do mundo e dos homens, nem que tenha que te matar para sempre!
Como te enganas!
Quando eles se acobardam..,
Aí, enrolam-se-me os membros
Eu sou o tudo e o nada,
A dor e o prazer,
A vida e morte.
Eu sou o teu porto de abrigo,
Teu quarto sombrio e calado.
Eu sou o saco de água pura
Que trazes escondido no teu olhar
À espera que a barragem se deixe soltar.
Eu sou a tua lágrima pressentida,
A tua dor sucumbida,
A tua alegria desbravada,
A tua raiva merecida,
A tua mágoa sofrida,
A tua gargalhada estridente,
O teu amor embalado.
Eu sou o teu pecado e a tua
redenção.
Eu sou A EMOÇÃO!
Eu sou a EMOÇÃO!
Razão:
Ai não, não, larga-me! Não me atinjas!
Eu quero dominar-me
Eu quero vencer!
(A Razão, já prostrada, chora. A emoção contempla-a e abraça-a. Fundem-se numa só e, num grito final, exclamam: Nasceu a EMOZÃO)
2 comentários:
A biblioteca é, sem dúvida, o local das descobertas, do confronto, das diferenças e fusões.E porque não...da emozão??
mt bom msm!
parabens
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