O que nos diz Cristina Gomes, professora na ESAF, sobre esta narrativa não-ficcional e testemunhal que leu, gostou e recomenda...
Autor: Svetlana Aleksievitch
Editor: Porto Editora
N.º de págs.: 472
Ano de publicação: 2015
Categoria: literatura documental
"Ler O fim do homem soviético confirma
a minha convicção de que a literatura supera os livros de História na
compreensão de uma época, pois revela a alma de um povo.
Como explicar que a alma soviética resistiu durante tantas décadas às
vicissitudes do Comunismo marcado por guerras, pela fome, pelo gulag, pelo absurdo e pela morte em nome
de um ideal?
Síntese de literatura documental e literatura de ficção, Svetlana Aleksievitch,
Prémio Nobel de Literatura em 2015, num trabalho de reescrita admirável, dá voz
a homens e mulheres das várias regiões da antiga União Soviética. Tece uma
manta de retalhos, vozes na primeira pessoa, depoimentos daqueles que viveram
durante esse período: mães, soldados, órfãos, generais, intelectuais,
deportados… As vítimas contam como eram denunciadas sem razão, como
sobreviveram aos gulags, como se
alimentaram de raízes e de folhas e como lamberam pedras nas terras geladas da
Sibéria para enganar a fome ou ainda como eram mandadas para a guerra contra os
nazis sem armas e sem agasalhos e denominadas de traidoras do povo se se
entregassem ao inimigo em vez de lutar pela Pátria até a morte. Contam também
como eram amantes da literatura, como se deliciavam a conversar horas nas
cozinhas, como cantavam hinos soviéticos com fé e orgulho. Não compreendem
porque foram merecedoras de tanto
sofrimento, contudo nunca questionam as razões do Partido, nunca acusam o pai
Estaline, nunca se revoltam. Foi simplesmente o seu destino, a parte que lhes
tocou, à semelhança de milhares que partilharam o mesmo sofrimento. É preciso
reconstruir, mas não esquecer.
“Tomar o sofrimento nas próprias
mãos, dominá-lo completamente e sair dele, trazer de lá alguma coisa. Isso é
uma grande vitória, só isso faz sentido. Não saímos de mãos vazias… De outro
modo, para quê descer ao inferno?”
O fim do homem soviético - Um
tempo de desencanto revela um povo que não foi ensinado a viver na
liberdade e na felicidade (partindo do princípio de que a liberdade e a
felicidade são duas faces da mesma moeda), ao contrário do ocidental, que vive
convicto de que os seus direitos fundamentais estão garantidos.
Seria bem mais fácil e consolador encarar a História como uma verdade,
a luta entre vítimas e carrascos, mas o drama é que a verdade é fragmentada,
não há fronteira entre o bem o mal; todos participaram no horror, desde os que
denunciaram os vizinhos, os amigos ou mesmo os próprios filhos àqueles que
cumpriram cega e orgulhosamente as ordens de prisão, de tortura e de morte num
mundo em que Deus já não tinha voz porque a voz do Partido era tudo.
A originalidade da obra está no facto de não haver juízos de valor,
nem acusações; não é um processo e muito menos um mea culpa. Durante o Comunismo os soviéticos acreditavam numa
causa, inebriados pelo orgulho de estar a construir o futuro da humanidade,
tinham como missão mostrar ao mundo o caminho da salvação, libertando-o do
capitalismo bárbaro. Por isso, o sofrimento, as privações, a negação da
individualidade, o sacrifício eram aceites e, pior, legitimados.
Mergulhar na alma soviética, ouvindo histórias da grande História, é
suportável enquanto somos simples voyeurs
desse passado. O problema é quando o passado parece confundir-se com o
presente e anunciar um futuro sem retorno, não o do vizinho, mas o nosso
futuro. Fica um arrepio, uma sensação de déjà-vu….
Não deixo de ver semelhanças com algumas vozes portuguesas daqueles
que viveram durante o Estado Novo e que, apesar de terem conhecido a miséria,
alimentam a saudade de tempos em que não havia os muito ricos e os muito
pobres. Contam fome, doença, trabalho de sol a sol, sobrevivência, medo, mas
também lembram solidariedade e igualdade no sofrimento e nas privações, lembram
a luta do dia a dia, lembram a fé consoladora num Deus que os punha à prova,
sem os castigar.
Vivências de homens e mulheres que cresceram no horror, em regimes
totalitários e a quem foi negada a liberdade. No entanto, o mais surpreendente
é a capacidade do homem em sobreviver, sedento sempre de acreditar em algo que
faça sentido, de preencher a vida com uma utopia, uma religião, uma paixão … e
alguém (Marine Le Pen? Putin? Donald Trump?) lhes promete esse sonho… e a
História repete-se… Subida do populismo…
Terá chegado o fim do homem soviético?"
[livro disponível na biblioteca]
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